How the trouble started, de Robert Williams

“That risk is everywhere. I’d learnt early that death isn’t only something that sits below the surface of the world and tiptoes in at the end of a long life. Death is now. Death is present.”

Por Thais Sawada*

Infância. A palavra remete a um período feliz, sem grandes preocupações. Para a maioria pode ser assim. Mas definitivamente não para todos. How the Trouble Started, livro de autoria do americano Robert Williams, aborda o tema a partir de uma perspectiva mais melancólica – sem abandonar a leveza e a inocência típicos de uma criança.

A história é contada pela visão do protagonista Donald. Aos dezesseis anos, ele é um jovem solitário, sem muitos amigos – tudo por causa de um trauma de infância que continua a assombrá-lo: quando ele tinha oito anos, se envolveu em uma confusão e a polícia fora chamada.

Williams já acerta desde o início, ao não revelar exatamente o que aconteceu no fatídico dia. Pouco a pouco, à medida que Donald vai contando sua história e revelando os seus pensamentos, começamos a decifrar o mistério. O modo como o autor conduz a narrativa faz com que a curiosidade do leitor seja atiçada a cada novo detalhe.

Devido a tal confusão, Donald e sua família passam a ser hostilizados na cidade onde moram. Para tentar escapar da situação, eles mudam-se para Raithswaite. Entretanto, o adolescente é proibido de tocar no assunto – seja onde for e com quem for. Na visão de sua mãe, a melhor forma de deixar o passado para trás é enterrando-o e fingindo nada nunca ter acontecido.

Portanto, sem poder pedir ajuda a ninguém, a única maneira que Donald encontra para esquecer o passado – ao menos por alguns instantes – e conseguir seguir com a sua vida é com o que ele chama de “vanishing”. Ou seja, ele cria em sua cabeça um cenário e uma vida completamente diferentes da sua realidade. Nesses momentos, ele é uma outra pessoa, com um cotidiano pacato e sem lembranças traumatizantes para atormentá-lo.

Solitário, ele deixa de ser sentir tão sozinho quando conhece Jake, um menino de oito anos vulnerável e negligenciado pela mãe. Os dois passam a se encontrar frequentemente. Ao saber que Jake gosta de ler livros de terror, Donald começa a inventar histórias e o leva para conhecer uma suposta casa mal-assombrada.

O jovem faz tanta questão de estar perto de Jake que ficamos divididos com relação às suas intenções. Passamos a duvidar das suas atitudes, ao mesmo tempo em que entendemos um pouco a sua forma de pensar. Justamente por ser um personagem-narrador, a sensação de ambiguidade é muito forte. Afinal, o que ele conta é a sua maneira de mascarar a realidade ou apenas muita ingenuidade? Um dos trunfos do autor é que a narrativa flui de tal modo que tudo causa incerteza no leitor, que fica sem saber em qual versão acreditar.

Confesso que o final me decepcionou um pouco. Mas mesmo assim How the Trouble Started vale muito a leitura. Williams consegue contar uma história nada alto-astral com muita delicadeza – ao mesmo tempo em que lida com assuntos densos, como os efeitos de sentimentos como a culpa e a solidão. How the Trouble Started carrega um certo pessimismo em todo o seu desenrolar. Mostra que as coisas nem sempre são como num conto de fadas e que é impossível fugir do passado, por mais desagradável que ele seja – mas que é preciso, sim, aceitá-lo.

WILLIAMS, Robert. How the Trouble Started. Faber & Faber, 2012. 225 págs.

*Na última quarta-feira do mês a Thais vai comentar suas impressões sobre algum título literário por aqui :) Acompanhem!

Pseudo Mixtape – Handle with care

Diferente de 90% da população ativa da internet, não tenho vocação para fazer mixtapes. Confesso até ter um pouco de vergonha de compartilhar meu nada precioso gosto musical. Receio igualmente expor minha dificuldade ao selecionar e/ou filtrar qualquer coisa nessa vida. Sem motivos aparentes, aproveitei um momento de procrastinação (jamais tédio) e comecei a jogar várias músicas que estavam na minha cabeça no grooveshark até achar, por bem, que poderia compartilhar isso como uma seleção musical.

Batizei primeiramente como Pseudo Mixtape por motivos óbvios: isso aí não tem pretensão alguma de ser uma mixtape de verdade. Disponibilizei para download junto com uma capa tão fajuta quanto a ideia. O Handle with care, gentilmente roubado de uma das faixas da lista serve só pra dizer que existe um título/subtítulo.

Portanto, não tentem encontrar coerência no título, conexão entre as faixas, motivo de escolha da imagem da “capa” (que eu apenas reciclei das minhas tentativas fracassadas com a La Sardina), etc. Se ainda assim existe interesse, basta clicar na imagem abaixo para baixar:

Do passageiro

Não consigo ler dentro do carro, muito menos no ônibus. Em São Paulo, os motoristas nos conduzem como se tivessem a incumbência de carregar porcos para o abate levar alguns pacotes para entrega. As arrancadas são sensacionais. Se você não se dá bem com o próprio equilíbrio, precisa passar por um treinamento antes de entrar em um ônibus por aqui. A não ser que você goste de levar algumas pancadas e exibir seus roxos por aí.

Nessas empreitadas, passei a admirar os seres humanos aptos a lerem E se equilibrarem ao mesmo tempo. Uns lindos, diga-se de passagem. Mesmo quando leem literatura do meu contragosto. No metrô, as coisas ficam um pouco mais fáceis – se não for algo entre 18h e 19h, claro. Encosto em algum canto ou me sento e consigo ler tranquilamente. Provavelmente em consequência do ritmo contínuo. Faço disso ritual, virou quase uma mania (ou TOC para quem preferir) – não entro no metrô sem um livro.

Não me levem a mal caso eu dispense companhias. Às vezes evito de propósito porque preciso daquele diálogo, dessa forma de fuga às avessas. Pois é uma forma de abstrair o mundo real, de fugir – só que para outra dimensão. Abraçar a causa da cidade, dos personagens, e de tudo que engloba o livro em questão. Mesmo que o caminho seja curto, coisa de 10, 15 minutos, já é um tempo precioso. Sem motivo aparente, também prefiro pular a parte em que a leitura tá tão boa que você vai parar na última estação da linha e só percebe porque o trem fica, de súbito, vazio.

Ainda falta muito, porém, para adquirir disciplina. Perco o controle das reações e quando me dou conta já fiz um comentário em voz alta, comecei a rir copiosamente, ou fiquei com os olhos marejando. Uma vergonha. Não contente em me humilhar por meio de situações banais do cotidiano, faço a gentileza de causar constrangimento quando estou envolvida em uma das minhas atividades favoritas. É meio impulsivo, uma resposta natural do meu organismo. Estou tão inserida naquele espaço que não sobra tempo para pensar “opa, controle suas reações!” – chega a ser um reflexo de quase tudo na vida, mas não entremos em detalhes neste momento.

No final do ano passado viajava com A Brincadeira Favorita, de Leonard Cohen. Tudo muito tranquilo, situações corriqueiras, coisas que poderiam acontecer com qualquer um. Até um certo reencontro, que em míseras duas páginas provocou um disfunção maluca de lágrimas e do impulso de fechar o livro e correr para a saída (e não virar a depressiva do metrô).

“Ela chorava e mostrava a palma da mão como se apertasse, para trás e para frente, um semáforo aflito, como que para apagar algo no ar da manhã, por favor, todos os contatos, votos, acordos, novos ou antigos…”

SÓ uma descrição de uma personagem derramando lágrimas, isso e nada mais. Lá está você, com livro azul da capa bonita, trav’ling lady, a TPM a um nível não aceitável pela sociedade, com o rosto todo vermelho e chorando como se o autor tivesse te pedido para imitar a moça sofrida. A culpa foi do Cohen, mas é preciso dizer que poucos livros fogem dessa experiência. Confesso que já ocorreu até um impulso de jogar o livro nos trilhos só de raiva por terem matado um personagem, por exemplo. Raramente escapo das reações adversas, mesmo tendo recebido avisos de outros leitores.

E acreditem, no episódio A Brincadeira Favorita, bastou uma escada rolante, já com a obra devidamente fechada, para prestar atenção aos arredores como se nada tivesse acontecido. Rápida transição para o mundo real em decorrência do choque de realidade de pessoas berrando CHIPDATIMCINCOREAISCOMBÔNUSDE15.

Portanto, se você se deparar com uma pessoa tendo reações estranhas com livros em mãos, não julgue. Respeite o nosso momento de envolvimento como se fosse só mais um louco do metrô e nada mais. Nossa humilhação pública momentânea fuga da realidade merece respeito.

12:51

No auge da minha pré-adolescência as grandes expectativas da minha vida estavam resumidas a esporádicas viagens para o interior de São Paulo. Reclusa a um nível de esquisitice elevado, aguardava ansiosa pelo dia em que meu pai mandaria arrumar as malas para visitar uma das minhas irmãs. Nada pessoal, adoramos família e tudo mais, só que passar uns dias com elas significava banca farta de novidades e revistas que não existiam na província E lojinha de CDs com o vendedor mais simpático de todos os tempos. Minha verve interesseira aflorou nessa época.

Uma morava em Rio Preto, a outra em Ribeirão Preto. Confesso não morrer de amores pela primeira cidade, mas a segunda nunca me decepcionou. Me conquistou tanto que eu mal imaginava como seria a vida no momento em que minha irmã pegasse o diploma. Quem morou lá entre 1999 e 2002 vai perguntar qual era a graça. Veja bem, você lá, com 12/13 anos estampados na cara oleosa cheia de espinhas, meio mendiga com as suas camisetas de banda, casualmente chamando uma cidade atrasada de lar. Te jogam em um lugar onde seu círculo social se resume a aspirantes a atores, galera que pouco liga se você quer sair com um abacaxi na cabeça – com bancas, livrarias e lojas de discos com lançamentos de verdade. Era o paraíso da adolescente rebelde.

Se hoje morro de vergonha da criatura desprezível que fui naqueles dias, trouxe comigo uma bagagem cultural da qual me orgulho bastante. Claro que essa carga veio cheia de porcarias que prefiro não comentar – meros detalhes, algo que hoje me faz rir. Até hoje matuto para lembrar o nome do meu lugar favorito em Ribeirão. Se brincar nem existe mais. Lembro apenas que ficava perto de uma praça imensa (que por um acaso abrigava o Pinguim, aquele lugar das cervejas maravilhosas) e meu pai, essa pessoa sagaz e cheia de querer agradar os filhos, fazia questão de me levar até lá no primeiro dia de viagem. Ele me forçou a batizar o espaço de “paraíso”.

E ele sentava em um canto enquanto eu me divertia anotando dicas do vendedor. Um senhor pelos 40 e tantos anos, solícito, que pegava as minhas listas na maior boa vontade e ainda se divertia recomendando novidades. Minha memória ruim apagou algumas passagens, mas um passeio em 2003, (quando minha irmã já estava formada e morando no Rio de Janeiro) marcou por apresentar dois discos que até hoje estão comigo – ligeiramente furados e travando nas passagens de uma faixa a outra. Porque naquela época nem vislumbrava a possibilidade de ter um Ipod. Acreditem vocês, minha compulsão por música começou quando eu fazia parte de uma geração que desconhecia essa bruxaria de fazer downloads. Eu pressentia que seria um dos meus últimos passeios para a cidade. Pedi para indicar dois grandes lançamentos do segundo semestre.

Ele chegou com o Room on Fire, dos Strokes, e Hail to the Thief, do Radiohead. Meu primeiro guru da música viria só dois anos mais tarde e céus, como aquilo foi representativo para mim. Não tinha dimensão na época, claro. Confesso que coloquei os cds com receio no player e quase não acreditei nos meus ouvidos quando me peguei embasbacada, achando tudo incrível. Lembram-se do Yahoo buscas? Foi meu aliado ao procurar por biografia, discos anteriores… sem ter a menor ideia de que um dia teria toda a discografia em casa, sem sequer ter ideia que veria essas duas bandas que conheci por uma despretensiosa indicação ao vivo. Naquela tarde, ainda cansada da longa viagem de volta para Campo Grande, nem desconfiava que entrariam no meu hall de bandas favoritas.

Se não fossem os Strokes, eu não me faria de louca pedindo pra desconhecidos me fotografarem ao lado de um carro da polícia em NY por motivos de: New York City Cops, they ain’t too smart. Se não fosse o Radiohead, eu jamais passaria pela embaraçosa situação de explicar que minha camiseta de We suck young blood não era uma homenagem à saga Crepúsculo.

No momento, desfruto de uma nostalgia que mal cabe no corpo. A complicação que é comportar algo tão bom que foi paulatinamente se esvaindo em meio aos percalços da vida. Ainda não descobri a fórmula ideal para tratar desses sentimentos. Para suprimir a ausência desses discos na minha casa – e entendam, uma coisa é tê-los no iTunes, outra é poder olhar para o encarte gasto e cheio de gordura dos meus dedos que cansaram de consultá-los – me perdi entre citações e vídeos no youtube.

Precisava gravar tudo isso em letras e achei por bem compartilhar. E nem me perguntem sobre a situação atual dessas bandas – I’m blinded by nostalgia.

what ever happened

[I want to be forgotten/ and I don’t want to be reminded/ you say “please don’t make this harder”/ no, I won’t yet]

reptilia

[I said please don’t slow me down/ If I’m going too fast/ You’re in a strange part of our town]
[Now every time that I look at myself/ “I thought I told you/ this world is not for you”]

between love & hate

[Am I wrong?/ don’t sing along with me/ I said I was fine,/ it’s just the second time We lost the war]

12:51

[friday nights have been lonely/ change your plans and then phone me]
[kiss me now that I’m older/ I wont try to control you/ friday nights have been lonely/ take it slow but don’t warn me]

under control

[I don’t want to waste your time/ I just want to say -/ I’ve got to say,/ we worked hard, darling/ we don’t have no control/ we’re under control]

2+2=5

where i end and you begin

there there

myxomatosis

a wolf at the door

A importância de bons personagens

Dizer que os personagens são a alma da história é o mesmo que afundar em um oceano de obviedade. Com raras exceções, um livro não é nada sem figuras interessantes. Qual é a graça de ler sem se apegar àquelas criaturas que você adoraria ter em carne e osso na sua vida? E o mesmo acontece com os filmes e peças: vai te desanimando de tal forma a busca por motivos para segurar a atenção torna-se inevitável – um recurso bem mais complicado no caso da literatura, diga-se de passagem. Embora ilustre com um exemplo positivo, o mesmo acontece com personagens repugnantes. Você vai ficar curioso e se empenhar no entendimento daquela mente insana.

Dois trabalhos me interessaram, na mesma época, pela primazia desse aspecto. Barba Ensopada de Sangue, romance de Daniel Galera lançado no final do ano passado; e O Som ao Redor, longa de Kleber Mendonça Filho que entrou no circuito nacional pouco depois do lançamento do livro de Galera.

Lembrando que não, um não tem nada a ver com o outro. Eles coincidiram, por um acaso, com o cuidado de seus criadores ao construir os condutores das histórias.

Se vocês procurarem qualquer coisa sobre O Som ao Redor, vão dar de cara com diversos críticos exaltando o incômodo provocado pela projeção. Discordo e sustento uma opinião contrária – é um filme pra você se sentir plenamente em casa. Ele não quer te mostrar o lado podre do ser humano, mas sim o lado verdadeiro, sem escrúpulos e sem pompa. Para você se sentir bem consigo mesmo por fazer coisas que seus familiares nem desconfiam.

O longa é ambientado em um bairro de classe média do Recife. Acompanha os pormenores do cotidiano de um núcleo familiar e a lenta incisão de um grupo de seguranças na região. Tem de tudo: o mauricinho protegido da família que rouba o som dos carros, o boa pinta que é super preocupado com a condição da empregada – mas que acha graça e elogia quando o filho dela consegue uma vaga no turno da madrugada em um supermercado, a mãe de família que usa um aspirador de pó para abafar o cheiro da maconha enquanto fuma escondida compulsivamente, o segurança que tira proveito da confiança de um dos moradores e, com o porte da chave da casa do indivíduo, entra lá para transar com a namorada. Parece familiar? Um recorte do cotidiano de muitas cidades brasileiras – só que em cenários recifenses.

O conjunto de personagens ajuda a delinear todo um retrato da realidade nacional. Nós, um bando de hipócritas – seja na posição de vítima ou de quem impõe. Pessoas estagnadas que observam a mudança gritante na configuração das grandes cidades como se nada estivesse acontecendo. Kleber Mendonça Filho soube pulverizar as principais características da sociedade brasileira com precisão em seus personagens. Creio que o olhar de crítico o ajudou a maturar o perfil de cada um, entregando ao espectador figuras plenas em sua complexidade, que bem poderia existir fora dos limites da ficção.

Barba Ensopada de Sangue

Em Barba Ensopada de Sangue, nos deparamos com um sem-número de estranhos – gente que você pode esquecer sem culpa por não memorizar os nomes. O narrador te ajuda. Ele, inominado. Um professor de natação um tanto soturno perdido na cidade de Garopaba, em Santa Catarina. O moço acaba de perder o pai, que em um discurso estranho e inesperado diz-se enfadado com a vida. Pede ao filho para matar Beta, pois a cadela não suportaria o suicídio do dono.

Indignado com a ideia do pai – que não só manifesta o desejo de dar cabo à vida como o concretiza – agarra-se à velha história da “morte” de seu avô. Praticamente uma lenda urbana em Garopaba. Ele contraria a palavra do pai e parte para Santa Catarina com Beta para investigar o paradeiro de seu avô.

O dado peculiar do narrador é sua falha de memória. Devido a uma complicação durante o parto, ele não retém o rosto das pessoas – precisa decorar detalhes como tatuagens, cabelos, cicatrizes – tudo para auxiliá-lo da remontagem mental que não guarda registros faciais. Preparem-se para a presença torrencial de descrições – há uma tentativa de aproximar o leitor à experiência do personagem central. Esse recurso pode tornar a leitura um tanto cansativa em certos momentos e, ainda assim, se sobressai como um ótimo ponto de ambientação. Essa característica particular transforma a própria experiência do narrador-personagem. Sua apropriação do mundo faz com que a atenção se volte para aspectos que, em sua cobertura de banalidade, são de importância latente. As pessoas e os lugares ganham uma valorização que foge do que estamos acostumados a observar nos livros.

Desde Vidas Secas, de Graciliano Ramos, não me envolvia tanto com animais da ficção. Assim como Baleia, Beta é uma figura cativante tão importante quanto qualquer indivíduo do livro. Vai por mim, você vai sofrer com ela em um dado momento da obra. E se falo do valor dos bons personagens, Galera acertou em cheio. Concluí a leitura há mais ou menos dois meses e ainda tenho boa parte dessas criaturas vivas na minha memória. Ele não deixa pontos falhos ao engendrar o perfil de cada um. A riqueza construtiva faz com que esses personagens moldem o enredo sem o risco de confundir o leitor.

Nessa abundância de descrições a própria Garopaba ganha vida como se fosse um organismo tão complexo quanto seus habitantes. Para evitar que qualquer pormenor da cidade passasse despercebido, o autor morou no local durante um ano. O que mais chama atenção é o fascínio pela presença esporádica de baleias na região, provável resquício da experiência de Galera com Cachalote (HQ feita em parceria com Rafael Coutinho).

As lendas urbanas também são curiosas – parecem surreais, mas são bem plausíveis àqueles que já moraram em cidades do interior e estão acostumados com histórias sem pé nem cabeça.

A literatura serve como válvula de escape por possibilitar situações que cremos impossíveis. Daquelas coisas que você pode considerar incrível por acontecer somente na ficção – assim como pode tirar o leitor do sério de tão inverossímil. Mesmo perante o encanto pelo impossível, acabamos atraídos por realidades comuns ao nosso cotidiano. Aquela história que parece improvável e aos poucos se revela cheia de aspectos que poderiam acontecer a qualquer momento em sua vida.

É este o ponto forte e de confluência entre Barba Ensopada de Sangue e O Som ao Redor – personagens reais. Gente que nem se empenha em parecer perfeita por priorizarem sua humanidade – mesmo que ela esteja permeada pela maliciosidade. Figuras desgastadas pela própria existência.

Voyeurism

Pode causar estranhamento, mas existe algo na construção do texto que o torna primoroso independente da temática. As palavras em conjunto foram emprestadas de Valery Nugatov (com tradução de Bela Shayevich). Saiu aqui, mas encontrei no tumblr do Daniel Galera. Para ler e se sentir um verdadeiro voyeur.

“I want to fuck you
in front of
works of contemporary art
in front of installations
assemblages
readymades
performances
video art
at an art gallery
or at an art auction
while people call out lot numbers
and bang gavels
or at home on a loveseat
but it has to be under
above
or near
a work of contemporary art
a work of art by
damien hirst
jeff koons
ilya kabakov
oleg kulik
I want to fuck you
when you’re on your period
so that
the sprays of your menstrual blood
and our sweat
would get all over the works of contemporary art
completing them or almost becoming a part of them
so that our ecstatic cries would drown out
the artful sounds of contemporary art
so that our writhing bodies would block and overshadow
the works of contemporary art
while you and I fucked in front of them
almost becoming part of them or completing them
and then we would take pictures of them
and take pictures of ourselves in front of them
in a way becoming part of the works
of contemporary art
and contemporary art itself
after which we would fuck in front of them again
while someone would take pictures of us fucking
or make a video of us fucking
made a video of us fucking in front of a video
in which someone might be fucking someone else 
and recorded the ecstatic cries we make 
and then layered them over the sounds of the works
of contemporary art
among which can be heard the ecstatic cries
of some other people
and not only people but also animals
and of course other sounds as well 
that have become a part of the works of contemporary art
and then of course I would cum on the surrounding objects
of contemporary art
which would already have been sprayed
with someone else’s semen with artistic intent
and then the drops of my fresh semen would complete
and become part of that old already spoiled or
conversely preserved semen that has become a part
of the work of contemporary art
which in turn also became a part in a way
of contemporary art
and then you and I would experience
not only sexual satisfaction
but aesthetic pleasure from our proximity
to contemporary art
and art in general
we would look at each other afterwards
and ask one another
do you feel it
and reply to each other
yes
I feel it
do you understand it
yes
I understand it
do you see it
yes
I see it
do you hear it
yes I hear it
can you touch it
yes
I can touch it
are you happy
yes
I am happy
I’m happy too
I love contemporary art
I love contemporary art too
I love you
I love you too
will the crisis pass?
the crisis will pass soon
let’s fuck?
let’s
fuck”

Amor de verão

O verão é pavoroso e remete a olhos semicerrados, dor de cabeça de tanto encarar o sol e suor (só maravilhas). Alguns dias tentam dar trégua com uma brisa leve, ameaça chover e o sol até topa se fazer de tímido. Reclamamos por instinto, mas não pedimos muito de vez em quando. Por vezes os ventos são favoráveis, vem aquela música, o vestido esvoaçante, o sorriso bobo, aviso na esquina e toda a ambientação necessária para que ele se estabeleça. Lindo, quiçá passageiro e de uma intensidade que beira o estranhamento. Prato cheio para os invejosos de plantão.

Quem disse que amor de verão precisa acontecer em forma de gente? Existem duas pessoas responsáveis pelo incidente, mas nosso contato está restrito aos acordes. Embora tenha conhecido a dupla um pouco tarde, tudo começou em 2009, na famigerada cidade de Londres. A história é característica dessas bandas que ninguém conhece – começou no MySpace (uma saudade). Tudo na surdina, com aquela gracinha de identidade secreta.

Em um dado momento, não dava mais para fingir que o Summer Camp era composto por 6 pessoas. Aos poucos eles abandonaram os disfarces e voilà, mais um casalzinho hipster – Elizabeth Sankey e Jeremy Warmsley – que se meteu a fazer música sem compromisso. O conceito é todo deles, o cenário muda apenas na hora de subir ao palco. Para dar conta da barulheira, eles se apresentam com mais três amigos. Hoje, a dupla reúne dois EPs (Young, lançado em 2010; e Always, de 2012) e um disco, Welcome to Condale, divulgado no final de 2011.

As músicas têm um efeito grave, é preciso dizer – vale até pra gente arrogante e insensível. É difícil resistir ao impulso de batucar junto ou de sair dançando pela casa – hábito comum às pessoas sem filtro como eu. Até David Bowie parece ter gostado, ao declará-los a melhor banda de chillwave dessa geração.

Como eu bem disse no início, os sintomas indicam amor de verão – o que condena o nosso envolvimento a um fim prematuro. Por enquanto, eles continuam a me acompanhar nesse bunch of boredom que chamamos carinhosamente de academia e nas caminhadas diárias do trabalho até a minha casa. Uma certeza de distração nesse cotidiano sem noção.

Better off without you deve ser a mais clichê. Daquelas que você joga o nome da banda e aparece como primeira ocorrência. Pode causar estranhamento num primeiro contato, mas quando menos se espera cai no repeat. Vai por mim:

Uma das minhas favoritas. Foi também o primeiro single da banda. Só não liguem muito para o clipe, aparentemente essa coisa de reciclar vídeos antigos virou moda entre bandas alternativas:

Se até agora você não fechou os olhos e saiu dançando pela casa feito um imbecil, dou uma terceira chance. Para abstrair de vez: