“Porque assim, eu não me arrependo de ter nascido mulher”. Há atos falhos que vem para o bem. Esse aí pipocou em algum momento da análise, quando discutia questões do corpo e feminilidade. Porque quando se é criança, quando a pessoa não contesta, segue-se a cartilha. Usamos as roupas e sapatos que nossos pais compram e optamos por atividades escolhidas por eles. Quando cheguei na adolescência, virei rebelde e rasguei a cartilha em pedacinhos. Minhas prioridades eram ler, ver filmes e assistir ao Disk MTV no fim da tarde. Com tantas ocupações, quem ousou pensar que sobraria tempo para escolher roupas, acessórios, sapatos? Nunca vou me esquecer do dia em que uma colega de sala virou para mim, às 7h da manhã, e perguntou por que eu não usava maquiagem – com expressão de choque, como se fosse algo muito fora do comum para uma menina de 12/13 anos. Para mim, o mundo ideal consistia em calça jeans, camiseta larga e tênis confortáveis. Não fazia sobrancelha, nem as unhas, e os cabelos… bem, são um caso à parte.
Vale dizer que menstruei muito cedo, então sempre houve dificuldade em lidar com a explosão de hormônios. Hoje acredito que o fato de sangrar desde muito cedo endossou minha rejeição com todas essas obrigações femininas. Menstruar, para ser sincera, foi um grande inferno. Embora fosse pirralha, aquele sangue foi minha primeira chave à vida adulta. Um alô de consciência corporal – era a hora de ver meu corpo mudar e preparar os ouvidos para o tão insuportável “agora você é uma mocinha”. Uma carga de obrigações que me parecia deveras ruim. Para uma pessoa que mal se conhecia, era muito difícil ter que abandonar o mundo ideal de brincar da rua e ser criança para “virar mocinha”.
Depois de quatro anos lutando contra mim mesma, resolvi pedir bandeira branca por um tempo. Pouco depois de completar 14 anos, decidi ir a uma nutricionista. O fato de passar a cuidar do corpo fez com que eu tivesse mais carinho por ele – foi quando comecei a me preocupar mais com questões estéticas, roupas e afins. Não que tenha ficado obcecada, só passei a prestar mais atenção, a querer comprar coisas e não só usar o que ganhava.
Contar uma experiência do passado assim passa a impressão de que o processo foi rápido. Tudo isso levou um ano inteiro, essa transição dos 14 para os 15 – e olha, foi só a primeira etapa. Na cabeça oca da adolescente seria uma forma de enfim me sentir parte de algo – uma noção horrorosa de tão tola. Sem ter dimensão que isso só pioraria as cobranças sociais. Porque você não pode levar tempo para se conhecer – tem que ser aquela mudança brusca, da água para o vinho. Na minha cabeça seguia aquela guerra – porque preciso acelerar um processo que pertence a mim e a mais ninguém?
Até hoje é uma batalha, e toda essa questão desencadeou outros tantos problemas na minha vida. Custei a dar ouvido ao meu próprio corpo, o que me gerou uma gastrite. Mas o fato de escolher o caminho mais longo e demorado me fez enxergar muitas coisas sobre ser mulher. Minha maior aquisição dessa experiência foi o respeito. Cada uma tem seu ritmo, seu jeito (ah, isso vale para qualquer gênero) – se existisse um padrão, provavelmente estaríamos vivendo uma realidade de Admirável Mundo Novo, e isso não seria nem um pouco agradável.
Sempre odiei o fato de ser branca demais. Odiava tanto que ao colocar um vestido ou uma saia queria chorar, sentia muita vergonha das minhas pernas. Pode parecer bobo, mas precisei começar a fazer academia para enfim me desligar disso. Por mais insuportável que esse ambiente possa ser, ele nos mostra uma gama bem variada de mulheres: aquelas bem magras, meio termo, mais cheinhas. Mais do que isso, são biotipos tão distintos que poderia passar um dia inteiro só falando sobre cada um. Passei a enxergar melhor as mulheres, sem raiva. São justamente essas diferenças que nos tornam tão especiais. Não existe unidade, e aqui vale bandar um abraço para todas as revistas femininas que querem nos impor um padrão de mulher magra (quase seca), mas que parece muito saudável graças à diversas técnicas de fotografia e photoshop. Tendo essa percepção, passei a incluir vestidos e shorts no meu vestuário. Foi preciso lidar com pessoas dizendo “nossa, parece que você tá com uma meia-calça branca”. Por mais chato que fosse, fiquei surpresa com o quanto as pessoas elogiavam.
O mesmo serviu para os cabelos. Foram muitas progressivas, alinhamentos, e cabelos lisos que pareciam esconder minha essência. Nesse nível. Falei sobre isso uma vez no blog, não tem nada mais libertador que ter assumido meus cabelos e conseguir gostar dele mesmo nos dias em que acorda todo desordenado.
Como se todas essas questões de aparente trivialidade não fossem importantes, temos o adendo homem. Porque na idade em que todas dão lá seus primeiros beijos, quem não pega ninguém é uma encalhada mal amada. Quem fica com um por semana é fácil e vagabunda. Ainda não inventaram meio termo, porém haverá sempre um rótulo pronto para suas atitudes. O homem, quando arruma um cardápio de mulheres, é garanhão. É estimulado a bater punheta desde cedo – afinal, isso testa a virilidade do cara, faz dele mais macho. Comer geral é só extensão disso. Aí me aparecem amigas que NUNCA se masturbaram. Porque é nojento, é coisa de mulher descontrolada que tá subindo pelas paredes. A pessoa cresce com essa noia de que masturbação é um monstro e em uma dessas deixa de conhecer o próprio corpo – o suficiente para, por vezes, não conseguir atingir um orgasmo quando faz sexo. Óbvio, quem vai conseguir gozar com outro quando nunca gozou sozinha?
Não sendo da categoria encalhada, existe ainda aquela obrigação de casar. A coitada vai lá, casa mais para agradar a família – pois convenhamos, a imposição de outrora deu uma dissipada considerável, ainda mais na atualidade, quando qualquer um pode juntar os trapinhos sem a obrigação de formalizar a união. Então começam a perguntar quando é que o filho chega. Como se fosse barato e fácil colocar mais um ser humano no mundo. Aliás, sobre isso, vale conferir o vídeo da sempre maravilhosa JoutJout. E as “encalhadas” precisam correr, pois é feio ficar para titia.
Cereja do bolo (e todos achando que já estava de bom tamanho até aqui): além de ser magra, esbelta, manter a pele sempre bem cuidada, casar e ter filhos e continuar maravilhosa, tem ser bem sucedida. Pois virou moda ser empreendedora desde cedo. Aqui vale fazer um adendo – fico feliz ao ver mulheres conquistando espaço no mercado de trabalho, mas bem, ainda ganhamos menos que os homens e isso precisa mudar.
Em resumo, temos fardos pesados demais para carregar. É tanta cobrança da família, dos amigos, da sociedade como um todo, que por vezes esquecemos de nos cuidar, negligenciamos tudo que nos é tão caro para tentar fazer parte do padrão – que mesmo parecendo muito correto e aceitável, ainda é contestado. Impossível agradar, por mais que a gente se esforce.
Essas são só algumas das construções sociais que engolimos todos os dias. Felizmente, somos livres para contestar tudo e seguir nosso caminho. Escrever e assinar nossa própria história, sem influência dos outros. Toda vez que vejo qualquer menina/mulher confrontada com tudo isso, ofereço meu apoio, e todas deveríamos ser assim. O feminismo é lindo e está longe de ser coisa de “mulher mal comida” (aliás, vamos parar de dizer que uma mulher estressada precisa de uma boa trepada?). Devemos unir forças e lutar pelos nossos direitos como mulher todos os dias.