perder-se também é caminho

“Perder-se também é caminho, dizem. Pouco matutei antes de comprar passagens e efetuar reservas em hostels – mesmo se não houvesse companhia, sentia necessidade de tentar. Se desse errado, paciência. Ao menos tentei dar um passo adiante. O sono neutralizou a ansiedade no caminho de casa até a bem quista estação Besançon Centre-Ville, parecia graça perto do meu desespero enquanto não anunciavam a plataforma do tal TGV-Lyria. E aquela estação toda igual, com corredores que se repetiam e me deixavam um tanto apavorada ante a possibilidade de me perder naquela cidade desconhecida. Nas costas, uma mochila emprestada e um tanto pesada, pessoas estranhas que reclamavam da gripe e as janelas abertas do tram, jovens que bebiam chopes tão gelados quanto o vento cortante às 11h da manhã, um hostel tão acolhedor quanto um hotel.

A sensação de estar sozinha nunca fui tão confortável.

Depois de me perder pelo centro da cidade sem destino marcado, esbarrei no museu de Magritte, um dos meus pintores favoritos. Perambulei em seguida pela Ilha dos Museus, onde pude conferir, sem atropelos, “A Morte de Marat”, de Jacques-Louis David. Tudo parecia tão fluido e agradável. Dava para descansar os pés sentando em uma esquina qualquer – toda cerveja belga é boa e alivia qualquer dor nos pés e nas costas. Deu vontade de chorar quando a fantasia acabou e me perdi no caminho de volta ao hotel, mas o coração ficou mais tranquilo quando um desconhecido tomou meu mapa em suas mãos e andou comigo até avistar o hostel do outro lado do canal.

Teve duas idas ao Delirium Bar sozinha, e ainda tive a ousadia de conversar com um casal de brasileiros que por um acaso pediu cerveja ao meu lado, eu, que estava sentadinha quase abraçada ao balcão (ninguém precisa mencionar o fato de ter conversado com mais gente ainda, inclusive um cara que estava de camisola e peruca da Sia). Teve cara de pastel ao descobrir que a moça fez faculdade – em São Paulo – com um amigo de infância da minha cidade natal. Como era interessante rir de tudo aquilo, encontrar divertimento nessas coincidências loucas da vida. O diálogo só se deu graças ao combustível, aquela sequência aleatória de pedir uma cerveja do cardápio a esmo e ficar atenta aos rótulos servidos aos outros. Escolher pela cor. A textura. Me sentir gloriosa pelo bobo fato de pedir duas cervejas ao mesmo tempo e revezar bicadas. Sozinha.

E voltar no dia seguinte só para dizer tchau. Um até breve, quem sabe. A despedida de quem não quer deixar partir assim tão rápido.

Bruxelas me encantou por não ser nada certinha e mandar um belo dane-se aos padrões. A começar pela Grote Markt, com suas construções monumentais e uma em específico, feita por diferentes arquitetos e apresentando diferentes formas em uma unidade só. Ruas estreitas e abarrotadas de turistas nos distraem com os quadrinhos espalhados pelos muros, os bares e restaurantes com mesas e cadeiras do lado de fora, as lojas de souvenirs que vendem cervejas (afinal, até cerveja é souvenir na Bélgica), os parques cheios de flores e com gramados verdinhos da primavera iminente, quiosques de waffle a cada esquina.

Foi minha primeira incursão rumo ao desprendimento do familiar. Não tinha consciência na época, embora sentisse o efeito penetrando na derme. Um grito tímido de liberdade, a sensação de ousar botar a boca no mundo só pelo gosto de sorrir à reação. Observar o mundo se moldando a um olhar meu. Sem ninguém para dizer onde ir, quando ir. Sem horários, sem compromissos. Tratando a tortuosidade com afeto.

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